Uma Guerra Poderá Ser Considerada Justa?


«Ode à Paz 

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos, 

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
                               deixa passar a Vida!»

(Natália Correia)
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O mundo que vivemos está cheio de conflitos. Não precisamos de estar plenamente sintonizados com a realidade político-internacional para disso nos apercebermos. Basta constatarmos os alarmantes sinais que nos vão chegando, de perto e de longe, através da comunicação social,  para compreendermos que de facto vivemos num mundo bastante hostilizado e turbulento. E é justamente por tudo isto que Eugene Dechamps não podia ter mais razão na sua análise holística do mundo face à indiferença que constatava nos homens e mulheres do seu tempo, afirmando inconformadamente que vê apenas fêmeas e machos estúpidos, apontando para o fim do mundo como consequência natural desta postura maléfica do homem. 

Referimo-nos aqui à guerra no seu sentido estrito de conflito armado entre Estados, ou no caso da denominada guerra civil, que envolve mortes de pessoas e destruição em massa. Obviamente que o título do artigo não é inocente, tendo em conta as circunstâncias adversas a que a Organização das Nações Unidas (ONU)   tem estado a deparar-se desde a primeira quinzena do ano, ao ponto de levá-la a aplicar o último recurso da sua Instituição, o uso da força para com o Estado Líbio, a chamada “Resolução 1973”. Resolução esta aprovada a 17 de Março no Conselho de Segurança, e que autoriza a intervenção militar no referido país africano, com a razão última de impor forçosamente uma zona de exclusão aérea, a fim de proteger os civis alvos de bombardeamentos militares por parte de tropas do coronel Mohamed Kadhafi, sendo considerada por muitos como uma Guerra Justa. Perante esta decisão controversa no seio do Conselho Segurança a questão pertinente que se levanta é a seguinte: será que podemos considerar uma guerra como sendo justa? A nosso ver, numa perspectiva meramente subjectivista a resposta é claramente negativa, por razões várias que pormenorizaremos infra. 

Temos ultimamente demorado bastante a ponderar sobre essa problemática questão, de difícil posicionamento, procurando na medida do possível formular publicamente uma posição que vai ao encontro com os ideais bíblicos que abraçamos. E isto levou-nos a vasculhar a doutrina Jus Internacionalista e Cristã para inteirar, de forma aprofundada, do assunto. Naquela doutrina os seus defensores são completamente a favor da Guerra Justa, fruto de influência do pensamento do santo Agostinho, nomeadamente autores que marcaram profundamente a nossa história moderna, como John Locke, Hugo Grócio, Francisco Suares e Francisco Vitória. Para estes conceituados autores a Guerra Justa serve para vingar o mal, quando um Estado tem que ser atacado pela sua negligência em reparar males cometidos pelos seus cidadãos, ou em restaurar aquilo que por maldade lhe foi retirado (…) as guerras justas podem incluir guerras por motivos de segurança, guerras para vingar o mal, ou guerras declaradas a países que recusam a passagem a outros. 

Com algumas surpresas a doutrina dos autores Cristãos, seguindo na esteira do pensamento do mesmo Santo Agostinho, embora com alguns atenuantes bastantes consideráveis, advogam que a guerra deve ser declarada só quando é necessário, e para reduzir a injustiça; e para que através dela Deus possa livrar os homens da necessidade e preserva-los em paz. Mesmo na guerra, o espírito do pacificador deve ser estimado (…) a sua conduta deve ser justa – manter a fé com o inimigo, cumprir promessas, evitar a violência desnecessária, o espólio, o massacre, a vingança, as atrocidades e as represálias, a começar pelo Santo Tomas de Aquino, arrastando posteriormente os grandes Reformadores Protestantes, nomeadamente Martinho Lutero, João Calvino, excepto o Anabaptista Menno Simões, que distanciou radicalmente deste entendimento, defendendo uma posição mais equilibrada e sensata a luz dos princípios valorativos da revelação bíblica, na qual aderimos sem nenhumas reservas. Menno Simões, baseou-se no facto de “o cristão ser seguidor do Príncipe da Paz, tendo recebido a ordem expressa de amar os seus inimigos e fazer bem aos perseguidores, dando a outra face a quem lhe bater”, para rejeitar categoricamente a possibilidade de um Cristão participar na guerra. 

Feito este brevíssimo enquadramento geral, cabe dizer que nada nos surpreende quando vemos pessoas não crentes a defenderem ideologicamente a legitimidade da Guerra Justa. É natural que eles tenham esse entendimento, ou se preferirem, “ajustes de contas”, visto que não têm o temor de DEUS nos seus corações, diferentemente dos crentes. E mais, vendo as coisas numa perspectiva secular e de forma objectiva, o conceito da Guerra Justa, é algo plenamente aceitável no nosso mundo contemporâneo, tanto que está inteiramente disciplinado na Carta das Nações Unidas, que habilita o Conselho de Segurança a recorrer ao uso da força em caso de ameaça à paz, ruptura da paz e acto de agressão. 

Quanto aos Estados membros da ONU importa frisar que a Carta apenas consente o uso da força pelos Estados membros em apenas duas circunstâncias: a) em caso da legítima defesa, individual ou colectiva (artigo 51.º); b) em caso de assistência às próprias Nações Unidas (Artigo 2.º, nº5), como a participação em acções por elas levadas a cabo ao abrigo do capítulo VII ou noutras, a título excepcional (as operações de paz e de ingerência humanitária, por elas determinadas ou admitidas. 

Ora, tendo essas realidades em consideração, e numa visão secular (não Cristã, insistimos), é razoável e legítimo afirmar que a legislação Internacional em vigor aceita claramente a referida Guerra Justa, contando que se reúnam os pressupostos acabados de se mencionar. Apesar de discordarmos na íntegra com essa orientação, não deixamos no entanto de reconhecer o livre arbítrio dos povos e dos Estados Soberanos no que toca à sua autodeterminação. Uma coisa é a nossa posição individual sobre a realidade das coisas. Outra coisa, e bem mais diferente, é a jurisdição que a sociedade em geral traça como sendo modelo de conduta e orientação para o seu destino colectivo. 

É claro que se nos fosse perguntado a nossa posição sobre a intervenção da ONU na Líbia (erradamente, os que afirmam que é apenas a intervenção dos EUA, França, Inglaterra e a NATO) a nossa resposta seria peremptoriamente negativa, contra qualquer tipo de acção levado a cabo por via armada, porque entendemos que a solução dos problemas não passa por essa forma. Igualmente, se nos perguntassem se a intervenção da ONU é legítima de acordo com as normais do Direito Internacional , a nossa resposta não podia ser mais do que afirmativa, na medida que se coaduna com os pressupostos jurídicos preestabelecidos pela Carta das Nações Unidas, obviamente sem prejuízo da nossa esclarecida posição e de todas as suas implicações práticas, e ainda, sem emitir o juízo do mérito sobre a quase unanimidade na decisão dos membros do Conselho Segurança, mormente dos cinco membros que fazem parte do Conselho Permanente da forma como assistimos. 

Congruentemente com aquilo acabamos de dizer, e que defendemos também noutros contextos nas nossas variadas conversas/debates informais que tivemos com os amigos, colegas e conhecidos sobre o mesmo assunto, somos contra o conceito da Guerra Justa e espanta-nos ver alguns Cristãos a defenderem o contrário, como se fossem não Cristãos. Por mais chocante que possa ser uma situação, como tem acontecido múltiplas vezes, de vermos pessoas inocentes a serem maltratas, mortas de forma bruta e injusta, precisamos sempre de consciencializar que o nosso Eterno DEUS está sempre no controle da situação; e que no Seu devido tempo manifestará o Seu poder para repor a justiça e punir os malfeitores. Nada do que é feito neste mundo transcende o Seu domínio de acção, ou que ELE não saiba. O papel que nos cabe como seus filhos é simplesmente a de dobrar os nossos joelhos em oração, intercedendo incessantemente a favor destes flagelos humanos, pedindo a ajuda Divina e intervenção para a sua eficaz resolução. Jamais esperançando que a guerra é solução dos problemas. Não é com a guerra que se faz a Paz; é sim com o espírito do diálogo, procurando pacientemente e com humildade alcançar os consensos das partes beligerantes. Só assim poderemos fazer pontes e construir solidamente o caminho da tão ambicionada Paz entre as pessoas e os povos em geral. 

Perante o exposto, consideramos extremamente infeliz a tese dos grandes teólogos que supra mencionamos e de tantos outros Cristãos que ainda hoje continuam a defender convictamente o conceito da Guerra Justa como sendo solução para os reais problemas que afectam o homem na sua variada relação com o próximo. Tal como o Teólogo Menno Simões, perguntamos a estes ditos Cristãos: “Digam-me, como é que um cristão pode defender biblicamente a retaliação, a rebelião, a guerra, o golpear, o matar, o torturar, o roubar, o espoliar e o queimar cidades e vencer países? … Toda a rebelião é da carne e do diabo … Oh abençoado leitor, as nossas armas não são espadas nem lanças, mas a paciência, o silêncio e a esperança e a Palavra de Deus”. 

Julgamos firmemente que, independentemente de qualquer tipo circunstância ou situação extremamente adversa em que possamos estar mergulhados, a máxima de Erasmo de Rotterdam deve sempre prevalecer: uma paz injusta é muito melhor do que uma guerra justa.